Participar, ainda que como espectador, de um Concurso de Barco de Fogo de Estância é uma experiência sensorial.
A visão é aguçada pela beleza dos barcos no cabo de aço – ou “no arame” –, indo e vindo e explodindo cores e limalhas pelos ares.
A audição é tomada pelo arrojo dos fogos, pelo estampido – hoje bem mais controlados, mas ainda existente – e pela empolgação do público.
O olfato é completamente embevecido pelo cheiro de pólvora constante no ar, em todos os cantos do Forródromo Rogério Cardoso.
O tato, que não se restringe à pele das mãos, é devidamente aquecido pelo fogo constante na ida e na vinda de cada barco concorrente e, claro, pelo calor da plateia.
E, finalmente, o paladar! Ora, o paladar é atendido pela imensidade de sabores tradicionais e modernos, por assim dizer, disponíveis em toda a extensão do espaço reservado para a competição, servidas aos quatro cantos do Arraiá Chico Surdo, justamente o criador do Barco de Fogo, numa história incrível que a gente conta um pouco mais adiante.
E como experiências sensoriais alcançam o âmago de cada pessoa, é preciso também entender como um concurso consegue, com o passar dos anos, atingir um ápice como o visto no último domingo dos festejos juninos, precisamente em 25 de junho do ano da graça de 2023, à ponto de obrigar a se pensar num local ainda maior para abrigar tantas pessoas entusiasmadas com uma competição tão exuberante.
Barco de Fogo e seus quase 100 anos
Não é de se espantar quando se imagina que barcos de fogo correndo em um cabo de aço é uma invenção absurdamente criativa. E foi isso mesmo o que aconteceu lá para o final dos anos 1930.
É que o jardineiro – profissão bem aprazível num lugar chamado de Cidade Jardim – Antônio Francisco da Silva Cardoso, conhecido popularmente como Chico Surdo, justamente por conta de seu problema auditivo, não aceitava a sua limitação física como impeditiva de seu sonho: navegar!
Mas a lida fluvial e marítima impunha, sim, dificuldades para ele e, por isso mesmo, a saída era usar a criatividade. Assim nascia o Barco de Fogo, unindo a paixão de Chico pelo navegar às paixões estancianas pelo fogo. Surgia ali um barco diferente, que não levava gentes, mas levava sonhos e cortava as noites juninas com seu espalhafatoso arrojo singrando os ares.
O tempo foi passando, a coisa toda se profissionalizando e eis que Chico Surdo quase ia para o esquecimento, sendo resgatado de forma honrada e muito digna com o cortejo Marujos de Chico Surdo, criado em 2019 e com seu desfile reunindo milhares de pessoas no dia 11 de junho, dia do… Barco de Fogo, quando são lançados ao ar 11 barcos em celebração a data e a ideia originalíssima de Chico Surdo.
E chega o dia do grande concurso
Prefeito que instaurou o cortejo dos Marujos de Chico Surdo a partir de uma ideia de Breno Vitor, entusiasta das festas juninas estancianas e seu assessor direto, Gilson Andrade (PSD) é a tradução da alegria num dia de Concurso de Barco de Fogo. E nada de púlpito e nem palanque: Gilson acompanha todos os 14 “barcos no arame” na companhia do público.
Por isso mesmo que, neste ano de 23, sentiu que está na hora de preparar algo ainda maior para 24. “Nós já tivemos o sucesso do Arraiá Chico Surdo sendo realizado aqui no Forródromo Rogério Cardoso. Mas nem nas nossas mais otimistas previsões dava para imaginar que o público do concurso seria tão grande este ano”, observou o prefeito.
E mesmo sem exagerar na promessa, bem ao seu estilo, Gilson Andrade deixou pistas do que deve vir por aí. “Realmente é preciso ver o que poderemos fazer para o ano que vem. Será preciso criar condições para que essa data específica, a do Concurso de Barco de Fogo, esteja preparada para receber mais e mais pessoas a cada ano”, observou Gilson diante da multidão que não tirava os olhos do “arame” – que é como popularmente é chamado o cabo de aço esticado que leva e traz os concorrentes.
E realmente é algo a ser pensado muito seriamente, inclusive da parte do governo estadual que, neste ano, se orgulha de ter recuperado a alcunha de País do Forró para Sergipe – aliás, alcunha essa criada, originalmente, pelo estanciano Rogério, que dá nome ao forródromo estanciano, em sua música/hino Chamego Só.
Diante de tantas boas e certeiras coincidências, o governo estadual não só poderia incluir o concurso do Barco de Fogo em divulgações nacionais e até internacionais, como também entrar de parceiro da prefeitura para se pensar e executar uma ampliação da área do grande concurso, né não? É como se diz: fica a dica!
Mas como se faz um concurso desses?
Com premiação de R$ 6.000 para o grande vencedor, o Concurso de Barco de Fogo de Estância tem toda uma metodologia que merece ser destrinchada. Neste ano foram 14 concorrentes. E como todo mundo conhece todo mundo no mundo do fogo estanciano, cada um deles leva apenas o seu número durante a competição. Assim nenhum jurado sabe a qual fogueteiro pertence cada um dos barcos e isso garante uma isonomia no julgamento.
“O que nós julgamos é a criatividade e beleza de cada barco, o acabamento dele, a luminosidade e o movimento de ida e volta. São quatro critérios aplicados para cada barco”, explica um dos cinco jurados deste 2023, Zeno Santos, radialista e professor que neste ano completou sua terceira participação no júri.
E diante de tantos barcos bonitos, vistosos e com trajetória de ida e vinda de sucesso, o que diferenciaria aquele que consegue a nota máxima? “Aí passam a ser pequenos detalhes para diferenciar um do outro. E a gente vai analisar. Eu julgo detalhando pequenos pontos para diferenciar um e de outro”, diz Zeno, que também considera a participação do público como um diferencial para a grandiosidade do concurso. “Esse ano não tem lugar para mais ninguém, como você está vendo”.
Barco de Fogo e o tecido social estanciano
Mas mesmo que a empolgação leve cada um dos presentes – inclusive este repórter – a sonhar em participar da competição, vamos logo de um aviso: para ser barqueiro, é preciso primeiro ser fogueteiro. E para ser fogueteiro, a tradição familiar é que vai acabar contando, ainda que não seja essencial. São três associações, das quais duas participaram da disputa, sendo que elas reúnem 60 fogueteiros ao todo, mas os cálculos extraoficiais dão conta de que existem ao menos mais 200 fogueteiros não associados.
Dentre os associados, um dos mais conhecidos e tradicionais é Cride. “Adenilson da Conceição, conhecido como Cride Fogueteiro”. Mas o Cride, se não vem de Euclides, vem de onde? “É assim, sabe? Eu tinha um irmão que, uma vez tomando umas, chegou em casa e me chamou: Cride, Cride! Aí como eu faço fogos, deixei Cride mesmo”, explica.
E a história de vida de Cride se funde a sua história no fogo estanciano. “Antigamente eu trabalhava como pintor. Hoje eu ganho o meu dinheiro e sustento a minha família com o Barco de Fogo. Eu trabalho o ano inteiro vendendo. Nessa época a gente vende muito. Mas quando passa, sempre vende: uma festa de padroeiro, um casamento. Assim eu vivo do Barco de Fogo”, explica Cride.
Mas, em pleno Concurso de Barco de Fogo é preciso diferenciar. Existem barcos e barcos. “Um barco comum a gente gasta hoje, nada não uns R$ 600. Já um desses (do concurso), o meu mesmo eu gastei R$ 3.000. Mas aí vai de cada um, o que utiliza, o que investe. O meu custou R$ 3.000!”.
Não é caro, ainda mais se o prêmio, neste ano, foi de R$ 6.000 pro vencedor? Cride entrega o que é paixão e o que é competição. “A gente conversa entre os fogueteiros e até joga uma proposta pro prêmio ser maior. Mas se não tem condições de passar desse valor, tudo bem. Eu mesmo não vou tanto pelo valor do prêmio, eu vou pelo amor. Eu amo o Barco de Fogo. Pra mim, isso aí é que é a alegria”.
Uma alegria e uma vida… “Eu, desde pequeno, aprendi com meu irmão. Eu perdi ele quando tinha 12 anos. E nessa época eu fazia “pitu de cano” e minha mãe não queria. Eu disse: ‘minha mãe, minha vida é essa. Meu sangue é esse’. E até hoje estou aqui. Tenho 48 anos e desde os 12 nisso. Lá se vão 36 anos”, finaliza Cride.
Mas o finalizar dele não foi apenas por conta do fim da entrevista, não! É que Cride, assim como outros fogueteiros, corre para ajudar o próximo Barco de Fogo que chega para competir. Aliás, aqui um adendo: além dos fogueteiros unidos, das equipes de cada barco em si, o que se vê o tempo todo são Bombeiros Civis circulando na área do evento, especialmente nas áreas de passagem dos barcos. É como se diz: com fogo não se brinca, mas para que a brincadeira seja topada e aceitável, a segurança tem que ser reforçada, né isso?
Mas o fato é que não há como separar o lúdico do Barco de Fogo. E mesmo que, ao longo dos anos, a coisa toda tenha se tornado cada vez mais séria e profissionalizada, o encanto aos olhos das crianças é inevitável, conforme comprova Selma Lima Souza.
Casada há mais de 20 anos com Josivaldo Fogueteiro, também um dos concorrentes da noite, Selma viu os filhos crescerem vendo o pai na lida do fogo e, hoje, dois seguem o mesmo ofício do pai. “Dos nossos cinco filhos, dois são fogueteiros. É bonito porque a tradição não pode acabar e segue crescendo mais ainda”, explica Selma.
Mas ser mulher de fogueteiro não reduz o espaço e a participação da mulher nas idas e vindas do Barco de Fogo, não! Muito pelo contrário, uma vez que mesmo não sendo fogueteira, a participação de Selma e de outras mulheres na disputa se configura em ponto importante, pois os barcos são cheios de detalhes visíveis durante o período de exposição deles. E isso também conta na hora da pontuação. “Eu participo na arrumação, nessa parte de arrumar o barco”, disse Selma, cheia de orgulho do barco desse ano. Orgulho e uma esperança devidamente justificada. “Já temos 8 troféus em casa”, comemora Selma pouco antes do “barco ir pro arame”.
Resultado do concurso e de tudo o mais
O São João de Estância não é só o Barco de Fogo, claro! Começa na Salva de São João, a cada dia 31 de maio, e segue até o São Pedro, com algumas datas máximas – caso do Dia do Barco de Fogo, 11 de junho; do São João, dia 23, do concurso, que tem data variável pra sempre cair num domingo; das datas para a escolha da Rua Mais Enfeitada, do Melhor Licor, da Melhor Comida Típica, do Melhor Fogo, enfim, é uma infinidade de opções durante os 30 dias juninos – e sempre acaba rompendo o mês de julho adentro.
Mas o Concurso de Barco de Fogo mimetiza bem tudo o mais: os fogueteiros são estrelas literalmente brilhantes de tudo isso. E, com o aumento das fiscalizações e das exigências de segurança, tudo o que envolve o fogo estanciano ganhou em segurança, mas não perdeu o brilho.
Por isso que, após quase cinco horas de apresentações, com o resultado saindo e contemplando o 1º lugar do fogueteiro Ariosvaldo Batista com 197,4 pontos, prêmio: R$ 6.000,00; seguido pelo 2º lugar do fogueteiro José Marcos Batista com 194,3 pontos, prêmio: R$ 4.000,00; e sendo o 3º lugar para o fogueteiro Domingos com Martins com 191, 2 pontos, prêmio: R$ 3.000,00, todos acompanhados de troféus, fica na memória alguns desses momentos mágicos que Estância e suas tradições proporcionam.
Mas fica também um quê de “quero mais”. Ou melhor: um quê de “Estância merece ainda mais”. Até porque, como informou o secretário de Comunicação estanciano, Heverton Ribeiro – que também fez as vezes de narrador do concurso –, ao todo, entre premiações e compra de fogos genuinamente estancianos, a prefeitura investiu, em 23, quase R$ 300 mil. E esse dinheiro, invariavelmente, voltou para a economia local.
E se o Barco de Fogo de Estância se tornar uma das peças centrais da divulgação do São João sergipano nos próximos anos? E se a prefeitura receber apoio total do estado para a ampliação da divulgação e do local do concurso? E se o Governo Federal perceber a oportunidade de internacionalizar essa tão bela festa e vende-la como atrativo para turistas pelo mundo afora? E se o Google fizer um Doodle com o Barco de Fogo num dia 11 de junho de anos vindouros?
E se… bom, são muitas condicionantes, mas todas embasadas numa certeza mais do que absoluta: o Concurso de Barco de Fogo de Estância, mesmo sem tantos “se”, já é uma maravilha que precisa e merece ser conhecida. Pra deixar um gostinho pra você, leitor e leitora, dois vídeos abaixo dão uma mínima ideia da grandiosidade da competição. E vamos para 24 e seus barcos – de fogo – sendo lançados ao ar. Até lá!