Luiz Eduardo Costa*
Barbudos e esmolambados, amontoados em caminhões e exibindo fuzis, entraram aclamados pelas ruas de Havana. Emblematicamente, era dia primeiro de janeiro de 1959. Havia sensação de ano novo misturada com aquela outra mais concretamente sentida ou sonhada: a de uma vida nova.
Do aeroporto, no outro lado da cidade, decolavam às pressas alguns aviões. Os passageiros apareceram como ratos que fugiam. Levavam amontoados pertences, entre eles os sacos com o dinheiro surrupiado dos cofres da República cubana.
Muitos estavam bêbados, e entre eles um gorducho e seboso sargento do exército, ou milícia cubana, que há algum tempo era o ditador todo poderoso: o execrado assassino e assaltante Fulgêncio Batista.
Batista começou a surgir na tumultuada cena politica de Cuba em 1933, quando assumiu o poder liderando uma “revolta dos sargentos”. Saiu do poder e retornou, outra vez foi deposto, em 1952 liderou um golpe, e a partir de 1957 começou a enfrentar a guerrilha liderada por Fidel Castro, iniciada com menos de cem combatentes vindos do México no iate Granma, e quase exterminados logo ao desembarque. Os restantes refugiaram-se na Sierra Maestra, desceram à planície, foram encontrando apoio e adesões, e tomaram o poder dois anos depois.
A revolução vitoriosa, começou apenas com uma tendência reformista e moralizadora, mas, promoveu um banho de sangue. Semanas a fio a população de Havana acostumou-se com o som dos tiros abafados pelas paredes grossas da fortaleza de La Cabana.
Só o jovem médico argentino Ernesto Che Guevara comandou, pessoalmente, mais de mil e quinhentos fuzilamentos, após julgamentos sumários, públicos e tumultuários.
Apresentava-se ao mundo um herói revolucionário, justiceiro para uns, carniceiro cruel para outros.
Diante de uma América Latina avassalada pela miséria, e submissa à prepotência do “irmão do norte”, Guevara, com o corpo destroçado pela asma e o enfisema pulmonar, encarnou a ideia de uma libertação pela força das armas. E o “paredón” o muro onde encostavam os que seriam executados, transformou-se no arquétipo a ser imitado pelas revoluções sociais vitoriosas.
Havia muito sonho, ilusões, e imperdoáveis equívocos, ou crimes.
Numa conversa que Guevara manteve no Cairo com Gamal Abdel Nasser, ele perguntou ao líder de uma revolução que percorria o mundo árabe, por que os “inimigos do povo”, no Egito, não eram exterminados como se fazia em Cuba, e ouviu a resposta que o deixou mudo: “Eu quero exterminar os privilégios de uma classe, não os seus integrantes”.
Cuba, uma quase possessão americana (a emenda Platt inserida na sua Constituição em 1902, admitia intervenção dos Estados Unidos em caso de necessidade) apresentava, contudo, cifras de desenvolvimento social só superadas na América Latina pela Argentina, Uruguai e Costa Rica. A ilha fascinante do Caribe, recebia um crescente fluxo de turistas, 80 % de americanos, e era, nas palavras mais incisivas de Eduardo Galeano, um enorme lupanar lucrativo, onde se misturavam, tráfico, jogatina, contrabando, prostituição e lavagem de dinheiro. Ao lado disso, a economia cubana sustentava-se nas 57 grandes usinas açucareiras, cuja produtividade decrescia, mas, havia a garantia de uma quota permanente de exportação para os Estados Unidos.
Nos meses iniciais da Revolução, Ramos Latour-Daniel – combatente e teórico de um modelo de economia capitalista com independência externa entre os dois colossos que polarizavam o mundo, definiu Fidel Castro como um “burguês comunista”, e censurou o Che por ter dito que a solução para tudo estava por trás da “Cortina de Ferro”. As hesitações do líder maior se diluíram uma vez por todas, quando Kennedy autorizou a aventura desastrada da invasão de Cuba por uma tropa de 1500 cubanos refugiados em Miami, com apoio da CIA. Desembarcaram na Playa Giron, e foram rapidamente destroçados pelo que restara do exército cubano, e os milhares de milicianos armados com fuzis HK, soviéticos, a eles entregues por Raul Castro.
Pouco depois, Fidel, ao cabo de longas conversas em Moscou com o Primeiro Ministro Kruchev, e o chanceler Mikoyan, retornou a Cuba e declarou-se marxista-leninista.
Guevara então proclamou: “Nossa ilha socialista está poderosamente protegida pelos misseis da União Soviética, a maior potência militar do mundo”.
Surgiu, então, a consigna logo espalhada pelo planeta: “Cuba si Yankees no”.
A frustrada invasão aconteceu em abril de 1961. Quatro meses depois, em agosto, Che Guevara descia no aeroporto de Montevideu a caminho do balneário de Punta del Leste, onde se realizaria uma conferência interamericana. Os que foram recebê-lo já portavam os cartazes: “Cuba sí Yankees no”. Mais de 62 anos depois eles permanecem nos protestos antiamericanos, hoje, menos intensos, mas, em Cuba, esmagada pelo absurdo bloqueio que a potência vizinha lhe impõe como castigo, a frase nunca desapareceu, e está em cartazes ao longo das estradas, e em todos os edifícios de Havana; e a cada dificuldade que o regime enfrenta ela ressurge, numa tentativa de manter, três gerações depois, o mesmo clima de furor revolucionário dos dias iniciais. Nenhum fervor de consciência revolucionaria ou simples ódio, poderá resistir ao ferrugem dos 62 anos.
Menos ainda, quando se constata, tanto tempo depois, inteiramente irrealizadas aquelas fulgurantes promessas que a retórica engalanada do Che, em Punta del Leste, fez surgir, diante de uma plateia onde estavam todos os Chefes de Estado da América Latina, e o verdadeiro dono da festa, o embaixador americano Douglas Dillon, nada crédulo.
Guevara vislumbrava maravilhas, como um crescimento da economia cubana a índices impensáveis de dez por cento ao ano, o que contrastava com a crise que o país atravessava, por absoluta ineficácia das medidas revolucionarias adotadas, entre elas a coletivização das terras, e o confisco de empresas estrangeiras, que, na falta dos técnicos abandonando o país não funcionavam, enquanto começava a surgir, com toda a imponência exigida pelo Estado totalitário a burocracia desproporcional, cujos tentáculos agigantados e intrometidos, vão, desde a banca de jornal até os cabarés.
Guevara, o planejador, queria exportar açúcar e charutos para o mundo, mas não permitia que entrassem em Cuba os cigarros estrangeiros, os tênis, e a Coca-Cola.
O regime cubano sobrevive até hoje, pelo funcionamento, este sim, eficaz, da sua rede de inteligência ao extremo bisbilhoteira, da qual não escapam um só cubano ou estrangeiro, mesmo os inofensivos turistas, mais atentos aos requebros sensuais das cubanas do que aos cartazes assustadores: “Sean los ojos y los oídos de la revolucion”. Um convite para que todos os cubanos sejam desconfiados um dos outros, e se espionem mutuamente. Em suma: uma sociedade subjugada e destituída de caráter.
Nesses 62 anos de ausência de cidadania e liberdade, todas as conquistas na área da educação, da ciência e do esporte, representam muito pouco, diante dos sacrifícios impostos à população.
Costa Rica, pequeno e exemplar país da América Central, com democracia plena, sem forças armadas, um gasto desnecessário (no caso de países miúdos e sem inimigos rondando suas fronteiras) apresenta invejáveis índices de qualidade de vida, de zelo ao meio ambiente, de respeito aos direitos humanos.
Enquanto na Costa Rica um movimento anarquista liderado por um médico, publicava na cidade de Alajuela um jornal onde defendia suas ideias, sem nunca ter sido reprimido, na mesma época, virada dos anos cinquenta para os sessenta, a revolução cubana criava o “Campo de Trabalho”, versão aliviada, todavia indecente, dos campos de extermínio nazistas. Era o Guanahacabibes para aonde foram mandados dissidentes, intelectuais, empresários, homossexuais, e nos anos oitenta, os aidéticos também lá eram confinados.
Há, infelizmente ainda, no Brasil, setores da esquerda que perdem a autoridade para criticar as investidas autoritárias de Bolsonaro, a nos ameaçar, todo dia, com suas falas fascistoides. Essa esquerda, visceralmente incoerente, mantêm o discurso enferrujado e obscuro, defendendo a repressão do governo cubano contra o seu povo, que volta a externar sua imensa insatisfação.
O ex-presidente Lula disse que em Cuba não se sabe de nenhum policial branco esmagando o pescoço e matando um homem negro.
Uma alusão comparativa absolutamente idiota ao que aconteceu nos Estados Unidos, porque em Cuba não existe imprensa livre, nem direito de reunião e de protesto. E ninguém sabe, exatamente, o que está acontecendo agora com os blogueiros, com os lideres do movimento de protesto.
Já nos Estados Unidos o povo encheu as ruas, o assassino está condenado, e surgiu o “Black lives mater”, que ajudou a derrubar o energúmeno Donald Trump.
Democracia, este, o ponto fulcral a ser defendido pela esquerda, centro e direita, exatamente para que façam um contraponto civilizado contra todos os extremos.
* é jornalista, escritor, ambientalista, membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Maçônica de Letras e Ciências. Além de seu próprio blog, é colunista do Portal F5 News. Vale lembrar que AndersonsBlog é fã e leitor incondicional do mestre Luiz, ok?