CSF – CULTURA SEM FRESCURA – Carlos Cauê disseca os atuais tristes tempos pandêmicos em Sinfonia da Desesperança

A coluna CSF é, originalmente, publicada nas sextas. Mas, por conta de bugs quase infindáveis, excepcionalmente ela está sendo upada nesta quarta, 22. Acabou que veio a calhar essa mudança pelo fato do tema tratado nela: um evento que acontece exatamente hoje. Confira:

O tempo é um danado das gentes, por inexorável! Por isso mesmo que, daqui a alguns ou a muitos tempos – e essa incerteza se deve a uma dúvida mais que sincera de AndersonsBlog sobre como se dá ou se dará a passagem temporal diante da volúpia imposta pela velocidade internética a que estamos sumariamente submetidos –, a análise destes atuais momentos da humanidade terá de recorrer a mais fiel das manifestações humanas: a cultural. Aliás, desde que o mundo é mundo, esse recurso tem sido infalível, pois só a produção cultural, com suas legítimas abstrações, tem o dom de capturar o espírito de cada época. E aqui chegamos a Carlos Cauê e ao seu Sinfonia da Desesperança, a ser lançado na quarta, 22. Na tentativa de evitar o lugar comum dum merecido rasgar de seda, afinal Cauê, atual secretário de Comunicação de Aracaju, tem sido figura ímpar, única e muitíssimo bem-sucedida nas pelejas eleitorais sergipanas destes tempos, AndersonsBlog pediu e conseguiu um dos trechos de sua nova obra – visto que são também de sua lavra “Contos de Vida e Morte”, de 1999, “Amorável”, de 2014, além de, também sua, a peça “Viva – A Vida em um Ato” ter sido encenada em 2004. E, por isso, o conto “D. Olga”, parte integrante do todo e que pode ser lido na íntegra ao final da coluna, acabou chegando por aqui. E, a bem da verdade, resumiu de maneira muito prática nossos atuais dias: Cauê, suave e poeticamente, expõe a incapacidade generalizada de humanizarmos uma situação que, humanamente falando, é tão áspera e estranha a ponto de não caber em nenhum de nós. “…tudo que era vida e emoção ficou um pouco mais cinza para dona Olga, mais vazio, mais mudo. Ela mesma foi tomada de um oco, uma sensação de não ser ninguém, não pertencer a lugar nenhum, a pessoa alguma…”. Precisa mais para entender que o drama pandêmico vivido por D. Olga carrega em si uma precisão desnorteadora de tudo o que temos vivido? E Cauê, traduzindo isso para o agora e para a posteridade, com seu Sinfonia da Desesperança, não deixa de confirmar a lógica apresentada por AndersonsBlog nesta CSF: é a produção cultural que, passe o tempo que passar, possui a capacidade de desnudar aos olhos de quem, seja daqui a quanto tempo for, tentar entender o que foram os tempos em que seguimos vivendo e, graças a Deus, seguimos vivos. Por isso mesmo que perder o lançamento de Sinfonia da Desesperança é meio que perder também o bonde da história, viu?

SERVIÇO

O que: lançamento do livro Sinfonia da Desesperança, um biscoito de fina literatura preparado pelo mago Carlos Cauê

Quando: nestes tempos de velocidade internética, é hoje mesmo, quarta, 22, às 18h

Onde: aí é pra saborear ainda mais intensamente, visto que o Centro Cultural de Aracaju, na pç. General Valadão, no centro da capital, abrigará esse imprescindível lançamento

Traje: na boa? Dispa-se, nem que por um pequeno instante, das dores que esses tempos pandêmicos impõem a todos nós. Pois mesmo sendo via uma Sinfonia da Desesperança, ver o mundo através da arte é uma forma de nos alimentarmos de… esperança, ora pois!

Conto inédito de Sinfonia da Desesperança

D. Olga

Surda aos gritos de “não sai de casa”, “não vai pra rua”, “vó, fica dentro de casa”, dona Olga deu os cinco passos necessários para girar a maçaneta e estancou na soleira da porta. Eu só quero respirar, disse para si mesma, ainda rindo da balbúrdia que acabava de instalar na casa.

Pegou no bolso do vestido um maço de cigarros, acendeu e suspirou de um prazer que nunca mais havia sentido.

Em brevíssimos segundos um filme todo passou na sua cabeça. Viu-se novamente jovem, com vigor e saúde. Reviu Antônio também assim. Sentiu a energia que tomava conta deles quando se conheceram e a ausência que ele lhe deixou quando partiu sem palavra e sem sorriso. Vinte anos. Lembrou-se das conversas com o padeiro José, às noites, na beira da calçada, que ela mantinha só para alimentar sua dignidade masculina. E sorriu, mais uma vez, da tolice dos homens. E das mulheres também, pensou, lembrando as peripécias das filhas e netas.

A rua, àquela hora a manhã, era para estar tomada de barulho. O sol a pino colorindo o dia, os meninos fazendo suas algazarras, as mulheres exibindo os seus quotidianos, os homens, no bar da esquina, esquentando as goelas com aguardentes e histórias.

Na rua deserta, agora, só um cão solitário fuçava o lixo em busca de distração. Sequer latia.

De repente, tudo que era vida e emoção ficou um pouco mais cinza para dona Olga, mais vazio, mais mudo. Ela mesma foi tomada de um oco, uma sensação de não ser ninguém, não pertencer a lugar nenhum, a pessoa alguma, nem mesmo à pequena Júlia, sua neta de oito anos, com quem passava tardes formidáveis, dando risadas e encontrando nesses momentos todo o sentido da vida.

Olga concluiu que alguma coisa estava mesmo acontecendo com o mundo, e sabia também que não veria o desfecho dessa coisa, seja lá o que fosse.

Lá dentro, o mundo parecia que voltara à estranha normalidade dos dias. Olga puxou profundamente a fumaça do cigarro e entrou.”

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